sábado, 9 de julho de 2011

Secundo canis

Assumiu suas sarnas. Cachorro de rua, largado e renegado. Agora não tinha mais vergonha, não havia como esconde-las mesmo. Coça-coça .Morde arranhando as ranhuras das sarnas.Era visível. Apesar disto não era recriminado. Todos já tiveram ou terão suas sarnas.
Rrr, dane-se eles. Isto coça-coça e sangra.

Chovia frio e forte. Nuvens móveis de água. Soprando ao vento forte.Acordou no dia seguinte, próximo a outros cães molhados.O cheiro, é. E uma poça, aparentemente limpa.
Olhou para si e viu sua cauda mastigada e suas patas esfoladas. Seus pelos, agora ralos, mostrando a pele craquelada.

Rolou, esfregou-se nas bordas do buraco que a continha.Sangrou, muito. Mas agora estava limpo, em fim.
Caminhou em sua glória no tempo até que envolveu-se numa pequena alcateia afastada da cidade.

Cachorros pulguentos!
Tudo no final acaba em...


Coça-coça.

domingo, 15 de maio de 2011

Primus canis

Só faltava abrir portas com suas patinhas peludas.Subia e descia escadas o tempo todo. Acompanhando sempre o menor movimento daqueles humanos que o adotaram.Gostava de pensar que era o mais velho dos 5 irmãos pois estava curioso demais para esperar mais seis horas.

No auge de sua curiosidade infantil, se fechou dentro da geladeira. Por sorte, a garota o resgatara em menos de cinco minutos.

Porém o verdadeiro episódio marcante aconteceu não muito tempo atrás.
Havia na sala de descanso uma estante linda, de um tom quente, que, de alguma maneira sabia ser cerejeira. Na parte de cima ele sentia a leve coceira de uma camada de poeira, já que fazia quase uma semana que não era limpa. Havia duas prateleiras nas quais estavam cuidadosamente encaixados diversos livros com resquícios de farinha e fermento em pó. Por algum motivo que não entendia, a garota gostava de levá-los para o lugar onde era feita a comida.Mas sua parte favorita era o armário.
Portas transparentes e conteúdo idem. Tudo tão sedutor! Vivia apoiando suas patas ali, sempre na esperança que de alguma forma se abrissem.

Se via encostado ali quase todos os dias, tentando ver o que havia na parte mais escura e profunda do armário.
Até que um dia acordou sozinho e determinado. Arranhou aquela porta por horas até que se quebrou. Estilhaços voaram por todas as direções.
No primeiro segundo sentiu-se no paraíso, no segundo, no inferno. Todo o seu corpo queimava com a força de mil sóis. Mil estilhaços, mil cortes, mil cicatrizes.

Após uma cirurgia se sentiu melhor. Mas os veterinários esqueceram-se de uma farpa de vidro que ficara naquela pata curiosa.

E ali ficou para o resto de sua vida. Acompanhando e espetando a cada lugar qu ia, a cada passo que dava.

domingo, 10 de abril de 2011

At the seaside.


O mar ainda estava cheio de peixes cuidando de suas vidas embriagadas em água e sal. Todos os dias naquela vila de coral todos faziam as mesmas coisas até que, subitamente, todos pararam.
Apareceu uma criatura circulando. Não nadando, circulando mesmo. No lugar de nadadeiras haviam expansões com terminações articuladas. Sua pele foi meio mutável durante o caminho e apesar de parecer confuso e desorientado, paradoxalmente, manteve seu trajeto linear. Não se alimentou de nada, apesar de todos terem certeza que sentia e distinguia todos os diferentes olores dali.
Quando passou, todos pararam e passaram a observar sua excentricidade.
As estrelas-do-mar desgrudaram seus olhos de pedra para olhá-lo, o peixe desceu na coluna d'água para chegar mais perto e o siri até andou de frente para poder olhá-lo com os dois olhos. E as algas, sim, elas também abriram seus olhos de clorofila.
E quando aquilo voltou a se esconder, pode ter levado um certo tempo para desfazer-se aquela cena congelada, mas quando voltou a se esconder, ninguém tirou dos olhos de pedra, dos olhos de água, de areia ou dos olhos de folha aquela imagem que passou deixando marolas de dúvidas na água.

Afinal, o que foi aquilo?

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Le passé.

- Para ler ao som de Kate Nash - "Nicest Thing"




Ia rolando por ali e por lá, sentindo com suas minúsculas patinhas as texturas do mundo, sentindo os declives com seu casco craquele em dois tons, sentindo os olores dos asfaltos, quinas e dos espaços pouco relvados, tão impróprios para ele.
Procurava a qualquer custo, sem tino, aquele lugar, úmido, com cheiro acre mas com tato de relva aparada. Lembrava-se de rolar na erva que parecia nunca crescer. Rolava, simplesmente. Até que parou e tentou lembrar da geografia do lugar. Isso ajudaria a encontrá-lo novamente.

Mas não importava o que fizesse, não se lembrava. Começou a rolar no local que estava mesmo, em círculos, só pra ver se não sentia um vestígio de memória do chão, da terra, das rochas ou da areia. Não, não poderia ter esquecido. Como voltaria lá agora? O desespero tomou conta de seu pequeno corpo, se contorcia em dor, vergonha de ter esquecido de algo tão precioso.Como poderia rolar tranquilamente pelo resto de seus dias sem lembrar-se do relevo? COMO? Já não importava se iria voltar lá algum dia ou não. Só precisava daquela lembrança que de tão suave, escapou. Foi-se como a brisa, foi-se como o algodão, como a seda, como mel. doce e suave. se foi.

E restou-lhe essa angústia que o consumia de dentro pra fora,doía tanto que chegou a preferir a morte,doeu tanto que anestesiou, como um relógio sem bateria, parou aquele ciclo contínuo de brasa em sua pele. Rolou em linha reta novamente, mas como um relógio sem bateria e não quebrado: sempre lá, com as engrenagens prontas para funcionar novamente a qualquer sinal de lembrança de umidez, relva aparada ou cheiro acre.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

La falena

A história não é longa. Só é uma história que todos já ouviram. Sabe aquela lagarta, toda feinha, que todo mundo tem medo e nojo?E no final de um pequeno escândalo, alguém lembra: "Um dia, ela será uma linda borboleta. Todos vão olhar maravilhados pra ela e admirando suas linda cores."
No final, até a lagarta acaba acreditando nessa história. Ela acreditou que no final, ela seria linda e admirada. E então ela se encasulou, e no tempo que ficou lá dentro, ficou torcendo para ter a mais linda das cores.

Ao fim de seu encasulamento, ela sentiu aquelas asas que antes não estavam ali, e aquelas pernas longas e articuladas. Retirou aquele casulo gosmento com uma certa dificuldade, abriu suas asas e... e... eram marrons.

Não era uma borboleta, mas uma mariposa. Daquelas sem graça, que ninguém se quer olha duas vezes. Então ela resolveu que iria virar uma borboleta, mesmo que isso significasse entrar naquele casulo até que ficasse de um vermelho brilhante, aquele que quase arde seus olhos, de tão obscenamente bonito.